O Corpo Desconfiado





Cresci saudável e feliz numa família que nunca se diluiu e sob os comandos de uma mulher forte e maravilhosa que era a minha avó. Como todas as pessoas que levam o fervor religioso ao extremo, essa mulher maravilhosa que ainda hoje recordo com saudade, era também muito austera e repressora. Da minha mãe tenho poucas ou nenhumas recordações na infância, apesar de sempre lá ter vivido e nunca me ter feito mal.
 

Como única rapariga no meio de três filhos, cresci a ouvir quais os deveres das mulheres, quais os "privilégios" dos homens e quais os perigos das relações. Afinal, os homens eram todos iguais e na minha família tinha o exemplo. Mulherengos, infiéis, subjugavam as mulheres. Cá dentro crescia a revolta de não poder ser assim, de que comigo ia ser diferente. Sempe que podia, barafustava em defesa dos direitos das mulheres, mas ia ao mesmo tempo escondendo o corpo, desejando ter outras formas e enraizando a ideia de que o amor é perigoso porque os homens são todos iguais.

O meu percurso pela vida foi correspondendo ao que interiormente sonhei como profissão. Nos afectos, os sonhos de criança passaram todos ao lado. A incapacidade de lidar com essa frustração levou-me à terapia, nos tempos da faculdade. Muito lixo tirei, muitas ideias arrumei, muitas arestas limei. Mas parece que nunca é suficiente.

Sempre atraí para a minha vida o que fui ouvindo na infância: homens infiéis, presos ao passado, pouco confiáveis e, sobretudo, manifestamente abaixo do que mereço enquanto mulher que quer ser feliz. Hoje acho que há momentos de viragem e experiências que nos fazem dobrar a esquina e entrar numa avenida cheia de esperança e pessoas melhores. Foi há 2 anos, quando a violência chegou à minha relação afectiva. Conheci a Mariana e comecei pela terapia individual. Seguiu-se a terapia de grupo, da qual destaco as fantásticas mulheres com quem partilhei a minha história e que me apoiaram incondicionalmente. Com essas mulheres especiais - que hoje considero boas amigas - percebi que não estava sozinha e que aquilo que me inquietava faz parte do dia-a-dia de muitas de nós. Além disso, percebi que tenho uma escolha e que não vou querer mais repetir os padrões que me foram incutidos na infância.

A necessidade de alguém exterior me garantir que eu estava certa ou errada morreu. Dantes, era preciso alguém dizer "não podes admitir isso" ou "não tens culpa nenhuma" para eu acreditar que, afinal, tinha de seguir outro caminho. Hoje, apesar de ouvir com carinho algumas opiniões, sei exactamente o que quero e o que está a mais na minha vida. E muita dessa confiança desenvolvi-a em terapia.

Além disso, hoje aceito que não tenho as formas perfeitas das mulheres das revistas e sei que as minhas formas são perfeitas tendo em conta os humores, os apetites e os momentos que atravesso. Aprecio-me enquanto mulher, mas, sobretudo, enquanto um todo. E tenho orgulho de mim.

Desenvolvi, ainda, outra característica. Não tenho medo de revelar quem sou e manifestar as minhas opiniões. É isso que me caracteriza e só dessa forma me cumpro enquanto pessoa.

Poderia tentar escrever mais e mais mudanças na minha vida, mas não ia conseguir deixar aqui tudo. Em resumo, obrigada à Vida por cedo me fazer ver que não existe só o aqui e o agora; obrigada às 4 mulheres corajosas e bondosas que me ouviram e partilharam comigo momentos tão dolorosos da minha existência. O que vai acontecer a seguir, não sei. Para já, o que aconteceu até aqui tem-se revelado um milagre que, aos poucos, se vai tornando bem real. (Sofia - participante do grupo feminino arteterapêutico. Grata Sofia pela tua partilha!)

1 comentário:

Jeferson Cardoso disse...

Avó marcante, homens consumistas dos sonhos femininos, terapia que ajuda; mas hoje Sofia se expressa bem, parece “se” conhecer intimamente e se expressa de uma forma delicada e forte. Lindo como o texto evolui para o seu “auto-encontro”. Também quero parabenizar e agradecer a Sofia pela partilha. (sorrio).
Mariana, Corpo Meu Templo é uma delícia! Parabéns! Abraço!
Jefhcardoso