A Fala do Corpo por Clarissa Pinkola Estés

Minha amiga Opalanga, uma griot, contadora de histórias, afro-americana, e eu costumamos contar em conjunto uma história chamada "A fala do corpo" que trata da descoberta de bençãos ancestrais dos nossos parentes. (...) Enquanto estamos contando juntas nossas histórias sobre o corpo, Opalanga e eu falamos dos golpes e flechadas que recebemos durante a vida inteira porque, de acordo com os Outros, com letra maiúscula, aos nossos corpos faltava algo ou sobrava algo. Nós duas consideramos que a outra tem uma aparência misteriosa tão bela que como pôde alguém pensar o contrário?

Extrair grande prazer de um mundo repleto de muitas espécies de beleza é uma alegria na vida à qual todas as mulheres fazem jus. Defender apenas um tipo de beleza é, de certo modo, não respeitar a natureza. Não pode haver apenas um tipo de ave canora, apenas uma variedade de pinheiro, apenas uma qualidade de lobo. Não pode haver apenas um tipo de bebé, de homem ou de mulher. Não pode haver apenas um formato de seio, de cintura, um tipo de pele.

Embora sejam verdadeiras e trágicas as perturbações da alimentação compulsiva e destrutiva que deformam as dimensões do corpo, elas não são a norma na maioria das mulheres. É mais provável que as mulheres que são grandes ou pequenas, largas ou estreitas, altas ou baixas, sejam assim simplesmente por terem herdado a configuração corporal dos seus parentes; se não dos seus parentes imediatos, então de uma geração ou duas no passado. Difamar ou julgar o físico herdado de uma mulher é criar gerações e mais gerações de mulheres ansiosas e neuróticas. As críticas destrutivas e desdenhosas a respeito da forma herdada de uma mulher privam-na de diversos tesouros psicológicos e espirituais preciosos e de vital importância. Privam-na do orgulho pelo tipo de corpo que lhe foi transmitido por linhagens de antepassados. Se lhe ensinarem a rejeitar a herança física, ela será imediatamente desvinculada da sua identidade corporal feminina com o resto da família. Se lhe ensinarem a detestar o próprio corpo, como poderá ela amar o corpo da mãe, que tem a mesma estrutura que o seu? - ou o corpo da avó, ou das suas filhas também? Como poderá ela amar os corpos de outras mulheres (e homens) próximas a ela que tiverem herdado o corpo dos mesmos antepassados? (...)

Esse estímulo a que a mulher comece a tentar esculpir o próprio corpo é extraordinariamente semelhante ao processo de escavar a própria terra, queimá-la, descascar suas camadas, desnudá-la até aos ossos. Onde exista uma ferida nas psiques e nos corpos das mulheres, existe uma ferida correspondente no mesmo local na própria cultura e, finalmente, na própria natureza. Numa psicologia de carácter holístico, todos os universos são interpretados como interdependentes, não como entidades autónomas. Não é de espantar que na nossa cultura coexistam a questão de esculpir o corpo natural da mulher, a questão correlata de entalhar a paisagem e ainda a de retalhar a cultura em partes que estejam na moda. Apesar de uma mulher não ter condição de parar a dissecação da cultura e das terras da noite para o dia, ela tem condição de interromper esse processo no seu próprio corpo. (...)

Uma mulher não pode tornar a cultura mais consciente apenas com a ordem de que se transforme. Ela pode, no entanto, mudar sua própria atitude para consigo mesma, fazendo com que projecções desvalorizadoras simplesmente ricocheteiem. Isso ela consegue ao resgatar o seu corpo. Ao não renunciar à alegria do seu corpo natural, ao não "comprar" a ilusão popular de que a felicidade só é concedida àqueles de uma certa configuração ou idade, ao não esperar nem se abster de nada e ao reassumir sua vida verdadeira a plenos pulmões, ela consegue interromper o processo. Essa dinâmica do amor-próprio e da aceitação de si mesma são o que dá início à mudança de atitudes na cultura. (in Mulheres que Correm com os Lobos, Clarissa Pinkola Estés)

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